terça-feira, 2 de novembro de 2010

A pianista

Mais um conto de Yonara Costa, de “Histórias de amor dos outros”.
Eles se conheceram num recital na sala Cecília Meireles. Ela, no piano. Ele, na plateia. Percebeu de imediato que ela tinha mãos pequenas para o piano. Ficou atento aos movimentos daquela mulher que lhe parecia uma bailarina: leve e delicada. Não sabia o que mais o seduzia, a música ou aquela figura feminina. Em época de masculinização e vestuário hippie, era agradável ver uma mulher de cabelos penteados, vestido e maquiagem leve. Tinha a impressão de que a qualquer momento, ela sairia rodopiando pelo palco para completar a sua fantasia.
Ao término da apresentação, foi cumprimentá-la. Disse-lhe que sua música parecia com um texto de Vinicius de Moraes. Ela respondeu: “é o meu poeta favorito”. Para impressioná-la declamou alguns versos do poetinha. Embora já tivesse passado da idade de acreditar em amor à primeira vista, ela ficou encantada com aquela aparência máscula que lhe recitava versos. Foi quando ele pegou as mãos dela e disse “não são mãos de pianista, são pequenas”. Ela recebeu o comentário como um elogio, fora difícil ganhar agilidade ao piano com dedos curtos, teve de treinar muito para conseguir. Agradeceu com um sorriso. Trocaram telefones.
No meio da semana, ele ligou, disse que estrearia no teatro Gota d’água, de Chico Buarque, com Bibi Ferreira no papel de Medeia. “Não gostaria de me acompanhar?” Ela disse que sim. Ficou feliz com a possibilidade de conhecer melhor alguém que comungava os mesmos gostos: música, Vinicius, Chico. Ele ficou de buscá-la em casa, em Santa Teresa. Ela achou gentil. No caminho, ela falava do prazer de deixar o carro na garagem, descer de bondinho e resolver os afazeres a pé. Ele morava na Tijuca, era funcionário público, definia-se como uma alma livre num corpo preso às obrigações do dia-a-dia. Gostaria de ser poeta, mas lhe faltara vocação ou incentivo ou os dois.
A peça foi maravilhosa! Saíram do teatro conversando sobre o amor de Medeia por Jasão e a distinta forma de amar entre homens e mulheres. Ainda que ele não quisesse discutir desnecessariamente, disse que homens e mulheres amam da mesma forma, mas foram educados para demonstrar de maneira diferente. Ela ficou reflexiva. Gostou de ter alguém ao lado com quem pudesse falar de ideias e sentimentos. Depois do teatro foram ao Amarelinho para um chope com a proposta de fecharem a noite caminhando pelo Aterro.
A conversa fluía. Política, artes. Quando de repente ele pegou a mão dela e disse de uma só vez: “sou casado”. Ela ficou paralisada na cadeira. Silêncio. Ele pagou a conta. Ela levantou-se e caminhou sem esperá-lo. Ele a alcançou. “E o passeio no Aterro?” Ela olhou  nos olhos dele e disse gravemente: “Não caminho ao luar com senhores casados”. E foi-se embora.
A lembrança de um encontro que seria perfeito ficou fragmentada para os dois. Os dias que se seguiram foram difíceis. A semana parecia se arrastar quando ele ligou, perguntou se poderiam ser amigos, ela disse que sim. Amizade independia de estado civil. Passaram a se ver com frequência. Era estranho, ele chegava no final da tarde, ela o esperava com bolo e chá. Conversavam sobre um novo trabalho dela, ele mostrava alguns poemas. Antes de anoitecer caminhavam pelo Largo dos Guimarães.
Ele tinha a esperança de que um dia ela mudaria de idéia. Ela seguia irredutível, mas não conseguia dispensar a companhia dele, ainda assim ambos sabiam que aquele convívio já era uma história de amor.
Tudo parecia imutável até o aniversário da pianista. Ele foi o primeiro a chegar cheio de expectativas. Flores e poemas. Ela estava brilhante. Num impulso, eles se beijaram como se fossem um casal de namorados. Ela ficou paralisada como no dia em que ele contou que era casado. Disse que se o gesto se repetisse não poderiam manter a amizade. Ele se desculpou, foi embora. Sem ele, o aniversário foi triste.
Na semana seguinte, ela ficou doente, uma febre alta. Terminou as aulas particulares mais cedo e foi para a cama. Ele chegou no fim da tarde e cuidou dela por toda noite. Durante o delírio febril, ela chamava por ele que apertava uma mão na outra. “Estou aqui, minha bailarina.”
Os anos se passaram. Tantos. Ela não sabia se havia desistido do amor ou o amor desistido dela. Ou se aquela forma de amar era suficiente. Muitas vezes ele pensava em contar que vivia um casamento de conveniências, que tentara se separar quando a conheceu, mas resolvera esperar os filhos ingressarem na faculdade, depois se casarem, depois... ah... Talvez ela o aceitasse. Talvez não quisesse sequer ouvir essa história que se parece com tantas outras. Ainda assim, ele chegava no final da tarde, quando ela o esperava com bolo e chá.
Ele se aposentou e as visitas ficaram escassas. Ela sentiu a falta dele, mas não se deixou abater, pensou em tantas coisas que ainda não havia feito, nos lugares que ainda não havia visitado. Resolveu viajar, compor mais. Foi quando surgiu um concurso para composições inéditas. Trabalhou a semana inteira na música, sentiu-se muito feliz quando concluiu a canção. E saiu esfuziante pelas ladeiras de Santa Teresa a fim de registrar a composição na Biblioteca Nacional. Desceu no bondinho cantarolando. Seguiu caminhando, ao chegar à Cinelândia tinha apresentação da banda dos Fuzileiros Navais em homenagem aos 99 anos do Theatro Municipal, eles tocavam “Chega de saudade”.  A música contagiava quem passava, como se as pessoas diminuíssem o ritmo para poder ouvir. De repente ela virou-se em direção ao Theatro Municipal. Era ele. Os cabelos mais grisalhos, parecia mais magro. Ainda era o homem por quem seu coração batia descompassado. Ele a viu, estava pronto para atravessar a rua na direção dela.
“A realidade é que sem ela não há paz / não há beleza”.
Era tão bom vê-lo. Ele correu na direção dela. Saudade das tardes vividas em Santa Teresa. “Mas se ela voltar / se ela voltar / que coisa linda / que coisa boa”.
Tudo aconteceu tão rápido. Como se a música tivesse congelado só ficou o movimento dele atravessando no sinal, uma moto avançando e ele sendo atropelado. Ela gritou. Correu na direção dele. Tudo à volta parecia normal. A orquestra tocava agora “Felicidade”. As pessoas continuavam seus percursos. “A felicidade é como a gota / de orvalho numa pétala de flor / Brilha tranquila / Depois de breve oscila / E cai como uma lágrima de amor”.
O corpo estirado no chão. As últimas palavras dele: “minha bailarina”. Os olhos que se fecham para não mais abrir. O mundo de possibilidade encerrado em alguns instantes.
P.S.: Para quem quiser conhecer mais sobre o trabalho de Yonara, temos alguns exemplares em nossa biblioteca para empréstimo. Aproveitem!

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